quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O TERNO E A CANECA




Letra - Tradução

E a rua ficava vazia. Cheia de passos, vazia de compaixão. Os olhares fingiam não ver o que as almas desesperadas tentavam mostrar. Uma moeda, por favor. Uma moeda e você pode melhorar uma vida. Duas moedas e com certeza irá destruí-la.

O rosto de fome, a fome de vida, a vida de sonho. Se pudesse juntar moedas no inferno, lá ficaria pedindo esmolas para os diabos. Mas o chefe de lá nunca simplifica a vida de alguém. A humilhação faz parte da condição, e o preço da comida escassa no final do dia é o fuzilamento pelos olhos secos, cultos, inteligentes, superiores e que, independentemente da situação, jamais fariam aquilo.

E sempre acontece, o sapato fica parado em frente, escolhendo a menor moeda para o crime. Depois sussurra uma história de peixe ou de pão. Mas agora foi diferente. O Terno cinza parou, se abaixou e ao lado da Caneca sentou.

- Sabe, a vida não é mesmo fácil pra ninguém.

- É, eu também acho. Ela tem gosto de fumaça e cheira a egoísmo – disse a Caneca.

- Daqui debaixo tudo fica mais difícil. Por que você não fica em pé?

- Por que as pessoas não gostam de ter que abaixar a cabeça para fingirem não ver, é mais fácil olhar pro outdoor ali em cima.

Com certeza o Terno ainda ficaria horas olhando a caneca e dizendo pra elas coisas bonitas que soem como conforto, mas que, como qualquer outro anestésico, aumenta a sensação de dor quando acaba seu efeito. Porém ele fez diferente, o Terno colocou a mão no bolso e da carteira tirou uma nota de dez dólares e deu nas mãos da Caneca. Você precisa mais do que eu. E sentado esperava um agradecimento que reconhecesse o seu grande ato heróico.

- Eu não estou à venda.

Aquilo foi intensamente doloroso. E quem disse que eu quero comprar uma caneca, com menos de dez anos, tão magra e faminta, com barriga inchada e olhos medrosos? E pensamentos são apenas pensamentos. A voz desaparece quando se sente totalmente inútil.

- Eu bem que queria, mas não estou.

- Não se recusa dinheiro na sua situação.

- É apenas um pedaço de papel, por que você dá tanto valor a um pedaço de papel? Você se vendeu para ele, eu já quis me vender também, mas não fui aceito. Agora já é tarde.

-Não queira me enganar – disse o Terno com raiva – a sua vida é tão vazia como a minha, com a diferença de que eu não passo fome.

- Você também passa fome. Acho que você queria alguém que se preocupasse com você como você se preocupa comigo. É tudo ilusão, agora você vai se levantar e sair daqui com um aperto no coração e se esquecer da minha existência em poucos segundos.

Ele tinha ainda tinha mil coisas para dizer, mas depois da última frase dita pela Caneca o Terno levantou-se e como se apenas tivesse parado para colocar a mão no bolso, tirou a menor moeda da carteira e jogou no chão. A Caneca em um ato rápido e feliz agarrou rapidamente a moeda e com um enorme sorriso finalizou:

- Muito obrigado senhor, que Deus te dê em dobro.

É nessas horas que devemos rezar pela avareza de Deus.