segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
ZERO!!
- E se o mundo acabasse agora?
- Na virada?
- Sim, e se esse forem nossos últimos segundos?
- Algúem resolveu chamar esse dia de primeiro, por isso fazemos isso tudo na virada.
- Hummm.
- Até porque existe algo chamado fuzo-horário, e se o mundo fosse realmente acabar junto com o ano, já estaríamos sabendo, porque ela já teria acabado em alguns lugares do mundo que já está em 2008.
- Mas se aqui for um lugar especial?
- Feliz Ano Novo, espere pelo próximo ano, porque você já viveu os dois primeiros minutos desse e nada.
- Isso é sorte ou azar?
domingo, 23 de dezembro de 2007
DOIS PANETONES COM GELO, POR FAVOR.
- Você por aqui?
- Por que está surpreso?
- Você não vem desde minha primeira masturbação.
- As datas simplesmente coincidiram.
- E por acaso trouxe presente?
- Você foi um menino bom esse ano?
- Que pergunta idiota.
- Ela não é minha, foram vocês que inventaram, e ainda me arrumaram essa roupa ridícula.
- É, eu sei, o Carnaval tem mais a ver com o coelhinho da páscoa.
- Eu sempre tenho um presente pra você.
- Um panetone?
- Isso é horrível, e natal não é só comer.
- Claro, tem também os presentes!
- Não esqueça do...
- Sai fora, nem me vem com essa história de reis magos, estrela e abóboras.
- Ah meu filho, o Papai Noel é ateu.
- Pirei.
- Mas era isso que você queria ouvir.
- Diga a verdade.
- Pra que verdade se você não acredita na minha existência?
- E precisa acreditar?
- Precisa acreditar no clima de natal.
- A única coisa boa no natal é o panetone.
- Você e esse seu vício.
- É uma epifania.
- Beba um martini com gelo.
- É bom ver a felicidade alcoólica das pessoas nessa época.
- Para se sentir superior, e pensar: se eu bebesse também seria feliz...
- Eu penso, mas sei que é mentira.
- Depois piora, e você percebe que se engana para poder enganar os outros.
- Papai Noel, por que você continua com essa merda de Natal? Você fica mais depressivo do que eu.
- Filho, agora é um negócio, não depende mais de mim.
- E você nem recebe salário.
- Eu não faço nada, apenas sou lembrado.
- Claro, se você subisse nas chaminés espalhando presentes, quebraria o comércio.
- Ninguém liga para os velhos, eles viram relíquias.
- E quando você morrer?
- Eu já morri meu filho, agora sou apenas um enfeite.
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
O BOSQUE
Letra - Tradução
No seu gueto, onde fica a boca? Ora, como em qualquer outro lugar, fica perto do nariz, porque depois de certo tempo ele se acostuma com o cheiro e não sente mais nada.
Eu sempre quis entrar nesse bosque e sentir o cheiro verde de uma realidade transformada em material reciclado pelo homem que pensa na natureza. Não se sente cheiro de macacos aqui, sente se cheiro de THC. Talvez tenhamos aprendido com os macacos. Ora, os macacos sempre foram felizes e não comem cogumelos, eles cheiram a própria bunda. Então é por isso, nossa cabeça não chega lá.
Pega. E se eu aproveitasse a sombra pra me esconder do dia. É o sol que faz a sombra. Daí eu ficaria escondido do mundo, e você me procuraria nos seus bolsos e acharia apenas um papel. Depois eu te encontraria, te enrolaria no papel e te amaria, fazendo fumaça e chamando os índios. E depois de ler o que estava escrito com uma letra impossível, você sairia correndo nu como uma raposa. E eu falaria pras suas cinzas que raposas não andam nuas.
Você pode seguir aquele caminho, pegar um livro e se limpar. Eu também posso seguir aquele outro, e comer algo delicioso com cheiro de estrume. Estrume não é delicioso. Você já provou? E você acha que eu tenho dinheiro pra comprar pura?
Sabe, quando o fogo acabar eu voltarei para o meu mundo esquecido. Voltaremos. E o cheiro de realidade me envenenará outra vez. Cadê o fósforo? Eu não quero viver em mundo em que preciso existir. Pegue a tarja preta e seja feliz, nada melhor do que curtir um barato e ainda ser paciente.
quarta-feira, 31 de outubro de 2007
O TERNO E A CANECA
Letra - Tradução
E a rua ficava vazia. Cheia de passos, vazia de compaixão. Os olhares fingiam não ver o que as almas desesperadas tentavam mostrar. Uma moeda, por favor. Uma moeda e você pode melhorar uma vida. Duas moedas e com certeza irá destruí-la.
O rosto de fome, a fome de vida, a vida de sonho. Se pudesse juntar moedas no inferno, lá ficaria pedindo esmolas para os diabos. Mas o chefe de lá nunca simplifica a vida de alguém. A humilhação faz parte da condição, e o preço da comida escassa no final do dia é o fuzilamento pelos olhos secos, cultos, inteligentes, superiores e que, independentemente da situação, jamais fariam aquilo.
E sempre acontece, o sapato fica parado em frente, escolhendo a menor moeda para o crime. Depois sussurra uma história de peixe ou de pão. Mas agora foi diferente. O Terno cinza parou, se abaixou e ao lado da Caneca sentou.
- Sabe, a vida não é mesmo fácil pra ninguém.
- É, eu também acho. Ela tem gosto de fumaça e cheira a egoísmo – disse a Caneca.
- Daqui debaixo tudo fica mais difícil. Por que você não fica em pé?
- Por que as pessoas não gostam de ter que abaixar a cabeça para fingirem não ver, é mais fácil olhar pro outdoor ali em cima.
Com certeza o Terno ainda ficaria horas olhando a caneca e dizendo pra elas coisas bonitas que soem como conforto, mas que, como qualquer outro anestésico, aumenta a sensação de dor quando acaba seu efeito. Porém ele fez diferente, o Terno colocou a mão no bolso e da carteira tirou uma nota de dez dólares e deu nas mãos da Caneca. Você precisa mais do que eu. E sentado esperava um agradecimento que reconhecesse o seu grande ato heróico.
- Eu não estou à venda.
Aquilo foi intensamente doloroso. E quem disse que eu quero comprar uma caneca, com menos de dez anos, tão magra e faminta, com barriga inchada e olhos medrosos? E pensamentos são apenas pensamentos. A voz desaparece quando se sente totalmente inútil.
- Eu bem que queria, mas não estou.
- Não se recusa dinheiro na sua situação.
- É apenas um pedaço de papel, por que você dá tanto valor a um pedaço de papel? Você se vendeu para ele, eu já quis me vender também, mas não fui aceito. Agora já é tarde.
-Não queira me enganar – disse o Terno com raiva – a sua vida é tão vazia como a minha, com a diferença de que eu não passo fome.
- Você também passa fome. Acho que você queria alguém que se preocupasse com você como você se preocupa comigo. É tudo ilusão, agora você vai se levantar e sair daqui com um aperto no coração e se esquecer da minha existência em poucos segundos.
Ele tinha ainda tinha mil coisas para dizer, mas depois da última frase dita pela Caneca o Terno levantou-se e como se apenas tivesse parado para colocar a mão no bolso, tirou a menor moeda da carteira e jogou no chão. A Caneca em um ato rápido e feliz agarrou rapidamente a moeda e com um enorme sorriso finalizou:
- Muito obrigado senhor, que Deus te dê em dobro.
É nessas horas que devemos rezar pela avareza de Deus.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
O LUAU
Letra - Tradução
Esquecer o mundo por um segundo. Isso só é possível quando você esquece o que é mundo. Esquece o que é esquecer e nem percebe que esqueceu tudo que não é percebido. E o som vem como um embalo de mãe, vem dando alegria, vem dando sono, vem apertando o peito e forçando um sorriso involuntário e eterno. Não. Não ouça a música. Deixe ela te envolver e te tomar para o seu mundo frio e solitário, que só é vivido no instante em que cordas vocais arranham sua lembrança póstuma de um sucesso inacabado.
E o sorriso contagia os lábios ansiosos que sorriem com a automaticidade de uma vida que pensa apenas em separar partes de uma mesa servida com um belo funeral. E deveriam ter gravado todos os nomes que foram ditos, para ter o prazer de todos esquecer. Para ter o prazer de sentir o frio do vento e sorrir, sorrir porque até o frio já dança no ritmo da música.
E ainda não ouviram sua voz. Ela parece esquecida em sentimentos que escondem quem você sonha em ser. Você não pode sentir o que deseja sem ouvir todos os sons, sem sentir o gosto do mesmo pão que amarga na boca e adoça a alma.
E ser cantor não é difícil. Ser cantor é acreditar na força de uma voz que desafina, que entrega as intimidades e que some no dia seguinte de vergonha ou de saudade, tentando se esconder, mas mostrando a todos a sua ausência com um sinal mais forte que sua própria presença.
E se fosse eterna não seria tão perfeita. Pois tudo o que dura pra sempre nunca aconteceu, e ninguém percebe que está acontecendo. Que a noite acabe logo, para podermos lembrá-la. Para podermos lembrar como foi bom esquecer.
sábado, 18 de agosto de 2007
PRIMEIRO CRIME
Letra - Tradução
Às vezes as palavras soam como zunidos. Tentar ouvi-las todas de uma vez é como a todas ignorar. Presenciar a festa dos sons de modo que o chão vibre com suas ondas, de modo que os olhos dancem em um ritmo empolgante e monótono. Nos intervalos das aulas tudo era assim. De alguma forma mantinha-me drogado com minha própria solidão.
Amores sempre acontecem, o difícil é percebê-los. Você se perde olhando para uma garota e de repente está pensando em chocolate e futebol. Naquela manhã, enquanto todos os outros garotos corriam pelo pátio, lá estava eu, como sempre, olhando o barulho indistinguível da felicidade infantil. Em um susto ouvi uma garota nervosa e rosa dizer: “para de olhar para mim, eu te odeio”. Qual era o meu segredo? O que eu fazia para conseguir o ódio de uma pessoa apenas com um olhar? Uns dois anos depois soube que ficava todo o intervalo a encarando de boca aberta. E eu achando que ninguém se importaria se eu ficasse pensando nos bolos da mamãe e nos jogos do Playstation.
Eu te odeio. Eu todeio. Etodeo. Eou. Eu. O eco daquela frase me perturbou. Levantei e saí andando, procurando um abraço das paredes. O banheiro foi meu destino. Nunca tinha entrado no banheiro da escola, pois tinha medo que as pessoas olhassem para mim. Tive sorte, ninguém estava ali para me vigiar. Entrei em uma daquelas portas e sentei no vaso sanitário como quem senta na calçada para ver os carros passarem na rua.
Não sei ao certo quanto tempo fiquei ali, mas foi o suficiente para todos os gritos de fora sumirem. Aquele quadrado era todo branco, com uma porta cinza e velha. Tinham muitas coisas nela escritas. Não me lembro de nenhuma delas, apesar de ter certeza de ter lido todas.
Resolvi escrever também. Eu também sou dono da porta do banheiro da escola. Peguei um lápis que tinha no bolso e escrevi: “Lola e”. O que eu estava fazendo? Segurei o lápis bem forte, risquei o “e” e escrevi “puta”, “Lola puta”. Foi um momento de felicidade inigualável, sim, eu amava uma puta, e agora podia fazer coisas que eu ainda não sabia fazer, mas que sabia que eram boas. Felicidade, acho que se pudesse voltar no tempo, teria chamado todas as meninas da escola de “putas”, ficar muito tempo escrevendo, ficar muito tempo feliz.
E enquanto desaparecido em meus próprios pensamentos, um barulho de passos tirou-me do meu melhor sonho. Saí olhando para o chão como o maior pecador do mundo e ouvi uma voz que me descreveu como eu realmente era naquele momento: “Cagão”.
segunda-feira, 30 de julho de 2007
PAREDES DE VIDRO
As paredes são feitas das próprias escamas que morreram, dos próprios sonhos que caíram. O olhar fareja um mundo de realidade que se fantasia no ego. O som da liberdade dói, mas encanta. Talvez um pulo para a morte fosse um pulo para a glória. A glória de quem tenta, já sabendo do fracasso. Mas não se sabe, a glória maior pode ser simplesmente fazer de conta que se existe e acreditar que milênios passados foram como segundos para superar os segundos que parecem milênios.
Se o olhar intimidante seca a boca e acompanha a velocidade da água, é preciso saber viver, sobreviver com ele. Os donos desses olhos não fazem companhia, pelo contrário, só mostram que a solidão acompanha. Não se aprende a ser só, se aprende a estar só, e dentro de um mundo a prova de água, apenas um vulto já traz a alegria da esperança de uma visita.
Viver só em um castelo faz com que se torne ao mesmo tempo rei e plebeu. E que se sonhe em ter uma coroa para poder lavar o chão como se deve, mostrando que é o mais belo enfeite da estante e que bebe as próprias fezes.
A prisão torna o tempo um redemoinho, o passado que envergonhava se torna glória, se torna exemplo, se torna projeto, desejo, previsão do futuro. Os pais ausentes viram heróis, os filhos desejados são estampados na mesmo fotografia que traz a criança que um dia se foi, as desilusões amorosas se mostram como ardentes paixões que esperam o acasalamento sob uma folha do rio. Se vive o passado, pois o presente não merece ser vivido. As gotas de água que caem são como ondas de um mar que nunca se viu, trazendo o som do oceano que envolve todos os outros sons, cegando a alma e trazendo o som que embala o sono que se deseja eterno.
Assim como um peixe colorido em um aquário redondo, as almas estão presas em uma redoma de vidro, e precisam de alguém que troque a sua água, que as purifique. Precisam de alguém que limpe o vidro e o deixe tão transparente que nem se note que ele existe. Porém o máximo que se consegue é alguém que pegue o aquário todo cheio de lodo e lama e jogue o peixe no rio. E achando tê-lo retornado para casa o joga aos dentes famintos.
Letra - Tradução
quarta-feira, 2 de maio de 2007
DE PALHA E CHAPÉU
Letra - Tradução
Eu não durmo. Isso me parece hipocrisia. A noite é a melhor parte do dia. Se pudesse, durante o sol, seria apenas uma sombra. O sol e a chuva desgastam o meu corpo, desgastam minha alma. Num mar verde tenho como castigo assustar, mas sou eu quem mais sente medo.
Os corvos são apenas o sorriso do dia. Um sorriso verdadeiro carrega em si a falsidade da felicidade. Não sei se amo os corvos porque eles estão sempre longe, ou se eles ficam longe de mim para renegar o meu amor. Talvez eu os queira assados, ou apenas bicando o meu
chapéu.
Eu não sei quem me fabricou. Acho que minha alma nasceu quando o meu criador se esqueceu de mim. Devia ser uma moça bonita, sentada numa cadeira de balanço, na varanda, olhando o pôr-do-sol e enchendo as calças velhas do pai de palha. Mas não foi ela quem me colocou aqui. Deve ter sentido pena, e me colocaria olhando o pôr-do-sol, não de costa para ele.
Como era lindo acordar com o cheiro de relva dos primeiros raios de sol. O tempo, a monotonia, o desgaste. Todas as manhãs, o mesmo raio que vai perdendo o aroma. A luz começa machuca a machucar. Como seria bom uma noite que não amanhecesse. Como seria bom fechar esses olhos de botões.
O sol era tão lindo, ele já foi a minha certeza de viver, hoje é minha certeza de viver, hoje é a certeza da minha incapacidade de morrer. Eu nem estou vivo pra poder morrer, mas também não estou morto. Não sei que tipo de magia me transformou de palha e chapéu a um ser que sente. Talvez eu seja apenas um sentimento esquecido pela mocinha da varanda.
Não posso mais apreciar o nascer do sol, pois vivo imaginando como seria o seu desaparecer. Acho que se pudesse ver a ira laranja do sol, encontraria minha realidade. Devo ser uma maldição, resultado de um feitiço. Feito para sempre para ser dia, desejando anoitecer.
Os que nascem para ver o pôr-do-sol desejam um manha eterna. Por que fugir do por do sol se é o fim quem sempre emociona?
sábado, 21 de abril de 2007
A MORTE DA ROSA
Letra - Tradução
Obra de Michelangelo, Davi estereotipado. Um fantasma de mármore macio. Pele de tulipas sobrepostas, que em sua transparência mostrava veias profundas e esfumaçadas. Nunca nenhum fio ousou nascer-lhe. Sem raça, sem cor. Branco como
cisnes de lagos azuis. Os olhos eram apenas pérolas. Sem íris.Vida? Não existia. Ele existia. Era possuído por terras sem limites, que sempre começam não sei onde e terminam aqui mesmo. Uma insuficiência que residia com a pouca luz do astro dormente que translada a sua única posse, o seu planeta.
Um ser, uma única função. Cuidava da sua amante, uma rosa ao seu tamanho equivalente. Rosa enraizada, solitária. Flor feita da mais pura seda escarlate, formada por larvas repugnantes. O calor da tinta-carne vibrava, despertava paixões até mesmo do último líder morto de um comunismo autoritário. O tronco verde, que por instinto vegetal produzia grandes espinhos, suportava uma única aglomeração de pétalas flamejantes.
Não pela inexistência de água, mas por rito inexplicável, regava a rosa consigo mesmo, com seu próprio sangue. Era preciso olhar bem de perto para distinguir um pedaço de tecido enrolado na sua mão esquerda de sua pele. Ambos brancos e opacos. Encarando a rosa, desamarrava, com a ajuda da boca, o lenço de sua mão. Sobre aquela mão fria e delicada, como o véu da noiva de olhar mais triste, existia um ferimento recém cicatrizado. O ser branco pegava o indicador da mão direita e com a unha limpa e longa de madrepérola abria novamente o seu ferimento. O sangue escorria. Era incrível um ser tão branco tê-lo tão vermelho. Regava a planta em um ato doméstico, insano e infeliz.
Como no cotidiano de um operário alienado, sobrepunham-se diariamente: tecido-mão-unha-sangue-rosa. Quanto mais rubra ficava a rosa, mais alvo ficava aquele sofrido pedaço do universo.
Quando o sangue já lhe negava sair, quando seco por dentro estava, preparava o fim.O fogo das rosas era tão grande que lhe atraia como um lobisomem de um filme de grande orçamento de Hollywood. Andando como um animal faminto e estéril, a figura andrógena aproximou-se da planta. Mais rápido que o piscar de um cão de guarda quebrou-lhe o tronco. Na posição ingrata de quem bebe o último átomo de um uísque escocês, ingeriu todo o seu sangue que jorrava daquele botão de rosa recém aberto.
Quanto mais bebia a seiva ardente, mas se acinzentava. Em metamorfose, o mármore de Michelangelo tornava-se bronze de Verrocchio. Os arrepios arrependidos da criatura ajoelhada colocavam medo na morte. De água para vinho: a pérola tornara-se negra. Os raios de sol se anoiteceram nas profundezas de um precipício. Negro do branco dos olhos às unhas dos pés. Agora, sua tonalidade imitava a cor de um ônix opaco. O corvo sem asas caiu jogado ao lado de uma rosa triste, insegura, murcha, morta e branca.
domingo, 18 de março de 2007
CORAÇÃO DE OURO
Picasso, Pablo. Homme devoilant une Femme, 1939.
Deitados na cama, em si mesmos, um casal. A voz masculina materializa-se:- Eu preciso de amor.
- Eu te amo.
- Eu preciso amar – disse friamente.
- Você não me ama?
- Não.
Nenhuma outra palavra promoveria tal silêncio. A sinceridade sempre é uma apunhalada. Às vezes extrai partes ruins, mas só às vezes.
A moça adorava as pernas e a sobrancelha do namorado e se sentia completa ao vê-lo mastigar. Mastigava como sua mãe. Devagar, de vagar, devagar. Ela não sabia, mas também não o amava. Só amava nele, o que não era dele. O andar do sogro, as sobrancelhas do ator famoso, a lentidão de uma tartaruga e algumas outras coisas.
- O que é amor, querida?
- Não sei, é...
- Você não sabe – disse interrompendo-na.
- Desculpa.
- Eu acho que o amor que sinto pelo meu cachorro é maior do que o que sinto por você.
- Você também não sabe.
- E também não tenho um cachorro.
Era assim que demonstravam afeto um pelo outro. Uma briga de sentimentos. Sabiam que o amor é fabricado, e tentavam construí-lo. Nunca conseguirão. O amor é feito a duas mãos, não quatro.
Olhando um no outro, como se tivessem em uma busca impossível, analisavam-se. O rapaz quebrou o silêncio:
- Eu só queria que você me entendesse.
- Só nós mesmos podemos nos entender.
- Isso é impossível.
- Você é o que decifra de você – disse a moça.
- Ou o contrário – deduziu o amante.
- Às vezes o seu coração é duro e frio.
- Às vezes você vê como o meu coração realmente é, querida.
Continuavam se olhando nos olhos.
- Eu só vejo tristeza nos seus olhos – disse a moça.
- É por que você vê um reflexo.
- Pode ser.
- Somos horrivelmente tristes.
- Talvez seja por isso que estamos juntos.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007
ASAS QUEBRADAS
Letra - Tradução
Chorem, mas chorem muito. Chorem como se eu também tivesse morrido. De certa maneira, isso ocorreu. Agora sou um verme que rasteja lentamente, ironicamente, comendo minha própria carne podre.
Não, eu não quero muletas. Eu quero continuar rastejando, me contorcendo de dor. Eu, que queria voar, devo esperar minhas asas nascerem novamente. Metal e borracha me levaram para baixo, levaram inocentes para cima. Injustiça! Por que não foi eu que virei anjo e deixei a culpa para os outros?
Minha carne em putrefação cheira a álcool. Devo colocar a culpa dos meus problemas na bebida, eu, o frágil alcoólatra prepotente. Beber, beber. O álcool penetrava no sangue, afogava os neurônios. Diziam que eu me transformava em outro quando bebia. Não. Quando bebia, eu mostrava quem eu realmente era. Eu era aquela criança crescida, aquela que o pai insistia para tomar um pouco de cerveja e que tinha medo de tomar a bebida e ficar idiota como todos os outros. Aquela mesmo criança que depois de certa idade bebia escondido por infantilidade, teimosia ou apenas por insegurança.
Sim, eu vejo que suas lágrimas são reais, mas dirigem-se à pessoa errada. Chorem por vocês, sou apenas um erro. Um erro rebelde, agressivo, que queria voar a cento e cinqüenta quilômetros por hora, para expressar a euforia, para mostrar quem manda, para aumentar a adrenalina, para não ver que estava na contramão, para matar as duas pessoas que mais amava como o pior dos assassinos.
Deviam ter maior cuidado ao juntar os pedaços do acidente. Quando pegaram meus pedaços ainda vivos, misturaram com tudo: cacos de vidro e asas quebradas. Hoje, sou frio como aquele metal tão afiado, sujo como aqueles pneus arrebentados. Tudo bem em me fazer um mutante de metal, mas por que roubaram para mim o coração de minha namorada? Hoje ele bate forte e triste, preso ao assassino, tentando fugir. Eu não sou eu mesmo, quando olho no espelho vejo os olhos do meu melhor amigo, aqueles mesmos olhos assustados no retrovisor, um segundo antes de...
Agora todo o meu passado transformou-se em um instante. O instante em que o carro fundiu-se com aquele caminhão em meio a uma estrada tão conhecida, que agora não sei mais como é, só sei que nunca quero lá voltar. Agora quero continuar, para sempre verme, deitado nessa cama de hospital, um casulo, esperando o momento certo de criar asas novamente e ir par o céu.